quarta-feira, março 16, 2005

Sou como a folha caída...


Posted by Hello
Não me chamem pelo nome
Que me deram ao nascer;
Sou como a folha caída
Que não chegou a viver.

Se eu sem riquezas nasci,
Chegarei a sonhar com elas
Na esperança de ser alguém;
Mas bem depressa deixei
A tortura de quem quer
Conquistar o que não tem.
Os nervos mortos, na terra
Dos meus planos iludidos,
Mentiram à própria fome!
Por isso nesta indiferença
Peço apenas: — e é tão pouco!,
Não me chamem pelo nome.

Sou como a folha caída
Pisada por quem passeia
Alheio à luz e à beleza;
E de todas as venturas,
Só me encontro nos silêncios
Que tem a minha tristeza.
Perdi-me no sofrimento
Que nos dão as aparências
Que julgamos entender...
Da vida não quero nada;
E não me falem no nome
Que me deram ao nascer.

Sou como flor esquecida
Nos canteiros da ilusão
De um jardineiro traidor,
Sou como fonte discreta
Entre folhagens cantando
Tristes cantigas de amor;
A fim de tanta vileza
Já não me posso iludir
Com as promessas da vida!
Tudo em mim sabe a derrota,
E até da morte duvido
— Sou como folha caída.

Sou como tudo que passa
No giro do pensamento
De uma criança a brincar;
E os meus mais débeis desejos
Morrem aos ais na lembrança
De quem se esqueceu de amar;
Nada no mundo me prende;
Nem a saudade de um beijo
Num momento de prazer!,
— Pobre corpo sem destino,
Renúncia firme de artista
Que não chegou a viver.

António Botto, As Canções de António Botto

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